O último pôr do sol
Dona Célia tinha 90 anos e os olhos cansados de quem já viu o mundo mudar demais. Sentava-se todas as tardes na cadeira de balanço, no mesmo ponto da varanda, de onde podia observar o céu, como se quisesse decifrar o movimento das nuvens. A brisa leve que atravessava o jardim parecia um convite para pensar nos amigos, irmãos, e até nos vizinhos que foram partindo ao longo dos anos. Aos poucos, sem que percebesse, estava cercada por uma solidão irremediável, daquelas que se acomodam entre as rugas, nos pequenos vazios deixados pelos que foram embora.
Ela não teve filhos, por escolha, dizem alguns. Mas a verdade é que as escolhas nem sempre pertencem a nós. “O mundo era tão grande, as possibilidades também”, dizia ela aos 30, cheia de planos que se diluíram ao longo da vida. O tempo, que parecia eterno, havia se transformado num acúmulo de despedidas. Seus amigos, um a um, partiram, deixando cartas, lembranças e uma sensação de que o passado lhe pertencia mais que o presente.
Com o passar dos anos, os rituais de despedida tornaram-se cada vez mais dolorosos, quase mecânicos. Primeiro, foi Laura, a amiga com quem dividiu as confidências da juventude. Depois, Antônio, o irmão mais novo, que sempre se dizia imortal por seu coração forte. E assim foi se esvaziando sua vida de presenças que lhe contavam histórias antigas, fragmentos de um mundo que desaparecia com cada um deles. Por vezes, sentia que carregava dentro de si o peso de todas aquelas lembranças, como se os mortos a visitassem em sonhos para lhe contar o que deixou de ser dito.
Dona Célia sabia que a finitude era seu destino, assim como o era para todos. Mas, ao mesmo tempo, era a única coisa que a tornava plena naquele estágio da vida. Porque quando tudo ao redor já havia partido, quando até as árvores pareciam envelhecidas em comparação às suas recordações de infância, o que restava era a aceitação de que seu tempo também se encerraria em algum ponto do horizonte. Era uma questão de paz, de fechar os olhos sabendo que não havia mais nada a carregar.
Naquela tarde, a cadeira de balanço parecia se mover em ritmo mais lento, acompanhando a respiração tranquila de Dona Célia. O sol começou a descer, e a luz alaranjada da despedida banhava seu rosto, fazendo suas rugas parecerem mais vivas, como se quisessem guardar para sempre aquele instante. E naquele último lampejo, ela sentiu-se novamente parte de tudo – dos amigos, dos irmãos, das memórias que a constituíam. Era o ciclo completo.
Dona Célia sabia que, talvez, não haveria alguém ali para lhe segurar a mão. Mas ela mesma seria sua última companhia, a presença que sempre buscou entender o sentido da vida e da morte. Era o final de uma história que terminava em paz, na certeza de que viver era, em última análise, um processo de desapego, de despedida – uma dança entre o que somos e o que deixamos para trás. A cadeira de balanço parou, e com ela, o peso do mundo pareceu se dissipar.
Por Jôh Vieira
*Todos os direitos autorais reservados à autora.
**Imagem criada por IA.
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