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O Natal da Vila dos Girassóis

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   Na Vila dos Girassóis, um lar para pessoas idosas cercado de flores e histórias, o Natal tinha um charme especial. Lá, os dias eram iluminados por risos, lembranças e os raios dourados de um sol que parecia sempre brilhar um pouco mais forte.      Dona Cora, a mais antiga moradora, estava agitada naquela manhã de dezembro. Aos 84 anos, comandava a organização da ceia com a autoridade de uma matriarca:     -  Natal sem bolo de frutas não é Natal! - dizia, com as mãos na cintura e os óculos escorregando pelo nariz.       Ao seu lado, Seu Benedito, que já tinha completado 90, fazia caretas enquanto descascava castanhas:      - A senhora reclama mais que o rádio quando está fora da estação!!!! - provocava ele, com um sorriso escondido no bigode branco.      Dona Cora não dava atenção. Estava ocupada demais decidindo se o presépio ficaria ao lado da árvore ou na entrada da sala:      -...

Envelhecimento esquecido

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     O som metálico das grades fechando ecoava pelo corredor estreito, marcando não apenas o espaço, mas também o tempo. João, com seus 73 anos, sentava-se no canto de sua cela, ajustando a bengala improvisada. Os anos haviam transformado suas mãos em mapas de rugas profundas, e seus olhos carregavam o peso de um passado que insistia em permanecer preso junto com ele.      Quando chegou ao sistema carcerário, João tinha pouco mais de 49 anos. Ainda vigoroso, acreditava que a prisão era apenas um intervalo doloroso em sua trajetória. Mas o tempo passou, impiedoso. No começo, ainda corria nas quadras do pátio, participava de conversas animadas e era temido pelo respeito que impunha. Agora, seu mundo se resumia a um colchão fino, um livro velho, conversas com a assistente social e a luta diária contra a indiferença.      O envelhecimento na prisão é como um rio que seca aos poucos. Não há espelhos para registrar o passar dos anos, mas cada dor n...

O último pôr do sol

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Dona Célia tinha 90 anos e os olhos cansados de quem já viu o mundo mudar demais. Sentava-se todas as tardes na cadeira de balanço, no mesmo ponto da varanda, de onde podia observar o céu, como se quisesse decifrar o movimento das nuvens. A brisa leve que atravessava o jardim parecia um convite para pensar nos amigos, irmãos, e até nos vizinhos que foram partindo ao longo dos anos. Aos poucos, sem que percebesse, estava cercada por uma solidão irremediável, daquelas que se acomodam entre as rugas, nos pequenos vazios deixados pelos que foram embora. Ela não teve filhos, por escolha, dizem alguns. Mas a verdade é que as escolhas nem sempre pertencem a nós. “O mundo era tão grande, as possibilidades também”, dizia ela aos 30, cheia de planos que se diluíram ao longo da vida. O tempo, que parecia eterno, havia se transformado num acúmulo de despedidas. Seus amigos, um a um, partiram, deixando cartas, lembranças e uma sensação de que o passado lhe pertencia mais que o presente. Com o passa...

Velha demais para usar biquíni

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     Dona Celina era a dona da padaria mais movimentada do bairro. Já passara dos setenta, mas a idade não domara nem um pouco sua energia e alegria. De salto firme e riso fácil, ela tinha um orgulho em acordar cedo, abrir as portas do estabelecimento e atender seus clientes com aquele sorriso que sempre dizia: "Hoje o dia é nosso."      As vizinhas do bairro, aquelas das rodas de conversa e do olhar torto, sempre comentavam — como que sem querer, mas com todo veneno de uma serpente — que Dona Celina era “muito avançada pra idade dela”. Elas se incomodavam com o jeito de Celina viver a sua velhice. Algumas delas sempre falavam: “Imagina, Celina ainda usa biquíni!”. E não era um biquíni qualquer: era o VERMELHO, chamativo e ousado, que ela usava para pegar um solzinho no quintal, sem a menor vergonha.      Dona Celina, como sempre, deixava as fofocas de lado e vivia sua rotina sem perder a pose. Mas, um dia, decidiu que era hora de...

A noiva de Junho

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     Dona Clara tinha 82 anos e um sonho guardado em uma caixa de sapatos no alto do armário. Entre os tecidos florais e rendas desbotadas, estava o pedaço mais precioso de sua memória: o vestido de noiva que nunca usara.      Aos 20 anos, o amor bateu à sua porta na forma de Miguel, um rapaz de sorriso fácil e mãos calejadas pelo trabalho no campo. Fizeram planos de casamento para junho, quando os ipês florescem e a igreja se enche de enfeites naturais. Mas a vida tem seus próprios caprichos. Miguel partiu para a cidade grande em busca de oportunidades, prometendo voltar antes da cerimônia. Nunca voltou!!!      Clara seguiu em frente, como tantas mulheres de sua geração, dividida entre o cuidado com os irmãos e o sustento da casa. Os anos passaram como um trem em alta velocidade, deixando marcas no rosto e memórias no coração, mas o sonho de se casar nunca perdeu seu brilho.      Agora, sentada em sua varanda, Clara olhava o c...

Senhora? Está me chamando de velha?

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         Estava eu em uma cafeteria, entre um gole e outro de um café maravilhoso, quando o garçom, com aquele ar polido, me chamou de “senhora”. De imediato, um frio percorreu minha espinha, e eu, que até então estava em um estado de relaxamento profundo, me vi interrompida por uma palavra tão simples, mas carregada de significados.      “Senhora? Está me chamando de velha?”, pensei em dizer, mas permaneci quieta, como se aquele rótulo tivesse caído sobre mim de repente, sem que eu estivesse preparada. O garçom, sem perceber o turbilhão de pensamentos que despertara, seguiu seu trajeto com naturalidade, sem algum problema, apenas uma formalidade, um sinal de respeito, algo neutro. Mas para mim, naquele momento, pareceu um marco, uma transição para um território desconhecido.      Lembro-me bem de quando o termo "senhora" era destinado à minha mãe, à minha avó, e como, de certa forma, eu associava essa palavra à sabedori...

Crônica: A sabedoria que nasce do tempo

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Imagem criada com IA      No meio de uma tarde abafada, a terra ressecada parecia clamar por água. O céu, em sua inquietação, ameaçava, mas não cumpria. As nuvens passavam rápido, deixando apenas promessas de chuva que nunca chegavam. Enquanto a cidade fervia, na sombra de uma mangueira centenária, dona Aurora, uma anciã de cabelos prateados e pele marcada pelo sol e pelo tempo, observava o cenário com uma serenidade que só os anos trazem.      Ela, como muitas outras pessoas idosas de sua geração, carregava uma sabedoria quase extinta, forjada nas mãos calejadas que aprenderam a ler os sinais da natureza. Sabia quando a chuva viria pela dança das formigas, quando a seca se prolongaria pelo formato das nuvens, e quando o vento mudaria de direção pela simples sensação no ar. Para ela, o clima não era um inimigo imprevisível, mas um velho conhecido, com quem sempre soube negociar.      Diante da crise climática que assola o mundo, marcada por e...